04.03.2010 | Histórias
O livro Menina Bonita do Laço de Fita é, junto com o Bisa Bia, Bisa Bel, um dos livros mais premiados e traduzidos da obra de Ana Maria Machado. Assim como o Bisa Bia, ele também é uma fonte aparentemente inesgotável de experiências vividas pelos leitores, como a Ana conta nesse trecho de uma palestra dada em setembro de 1996, no Congresso da Sociação de Literatura Infantil em Montevidéu e reproduzida na íntegra no livro Contracorrente.
Com a palavra, Ana Maria:
“Este livro, para mim, é uma história que surgiu a partir de uma brincadeira que eu fazia com minha filha recém-nascida de meu segundo casamento. Seu pai, de ascendência italiana, tem a pele muito mais clara do que a minha e a de meu primeiro marido. Portanto, meus dois filhos mais velhos, Rodrigo e Pedro, são mais morenos que Luísa. Quando ela nasceu, ganhou um coelhinho branco de pelúcia. Até uns dez meses de idade, Luísa quase não tinha cabelo e eu costumava por um lacinho de fita na cabeça dela quando íamos passear, para ficar com cara de menina. Como era muito clarinha, eu brincava com ela, provocando risadas com o coelhinho que lhe fazia cócegas de leve na barriga, e perguntava (eu fazia uma voz engraçada): “Menina bonita do laço de fita, qual o segredo para ser tão branquinha?” E com outra voz, enquanto ela estava rindo, eu e seus irmãos íamos respondendo o que ia dando na telha: é por que caí no leite, porque comi arroz demais, porque me pintei com giz etc. No fim, outra voz, mais grossa dizia algo do tipo: “Não, nada disso, foi uma avó italiana que deu carne e osso para ela...” Os irmãos riam muito, ela ria, era divertido. Um dia, ouvindo isso, o pai dela (que é músico) disse que tínhamos quase pronta uma canção com essa brincadeira, ou uma história, e que eu devia escrever. Gostei da idéia, mas achei que o tema de uma menina linda e loura, ou da Branca de Neve, já estava gasto demais. E nem tem nada a ver com a realidade do Brasil. Então a transformei numa pretinha, e fiz as mudanças necessárias: a tinta preta, as jabuticabas, o café, o feijão preto etc.
O livro faz muito sucesso e foi traduzido em vários países. Onde, evidentemente, foi encontrando leituras ideológicas distintas e variadas.
Na América Latina, região acostumada a misturas e mestiçagens, teve a honra de ser recomendado e incluído em premiações e seleções de melhores obras na Venezuela, na Colômbia, na Argentina.
Na Suécia, também teve uma recomendação especial nas bibliotecas públicas, como um exemplo de convívio multicultural e pluriétnico.
Em outro país nórdico, na Dinamarca, uma funcionária muito militante, do setor de bibliotecas, o condenou e recomendou que as bibliotecas não o comprassem, porque o livro sugere que negros e brancos vivam em paz como bons vizinhos, sem que os negros lutem por seus direitos e façam valer suas reivindicações daquilo que a sociedade lhes nega. Para ela, o livro seria uma desmobilização da luta e uma incitação ao conformismo.
Nos Estados Unidos, num debate com professoras primárias em Wisconsin, uma delas pediu a palavra e disse que achava espantoso que eu tivesse a coragem de associar numa mesma história uma menina negra e um coelho, quando todos sabem que o coelho é um símbolo de promiscuidade sexual e proliferação e que essa associação era ofensiva aos negros. Mesmo se levássemos em conta que eu sou latina e que essas questões de promiscuidade não nos assustam tanto em nossa cultura, De tão estupefata, fiquei sem reação no primeiro instante, e não sabia o que responder. O que foi muito bom, porque meu silêncio permitiu que outra professora, e esta era negra, me defendesse frente à primeira, branca e loura. Contou que seus alunos tinham lido o livro e ficaram encantados, adoraram se reconhecer como bonitos e donos de um padrão invejável de beleza, capaz de obcecar um amiguinho branco.
No norte do Brasil, numa livraria de Belém, apresentou-se a mim uma vendedora negra e linda, dizendo: “Muito prazer, eu queria muito conhecer você. Eu sou a Menina Bonita do Laço de Fita”. E contou que dez anos antes o livro fora para em suas mãos por acaso e ela o leu. Achava que era bonita e deliciou-se em ver que os livros reconheciam isso e eram capazes de mostrá-la linda. Identificou a leitura com verdade, coragem, e como uma espécie de espelho mágico, que a refletia e revelava como sabia que era, mas nem sempre era vista pelos outros. Interessou-se por livros, não tinha dinheiro para comprá-los, foi trabalhar numa livraria para aproveitar os momentos livres e ler tudo que lhe caísse nas mãos. Acabava de convencer o patrão a abrir a primeira livraria infantil da Amazônia sob sua responsabilidade.
Posso falar de outras leituras, mas não há muito tempo, nem é o caso. Estas bastam para atestar o que eu gostaria de ver discutido aqui. Um livro não é apenas aquilo que está escrito nele, mas também a leitura que o leitor faz desse texto. Os dois processos são ideológicos. Os dois pressupõem uma determinada visão do mundo. Para que o livro tenha um potencial rico, com muitas significações, é necessário que seja cuidado, tenha qualidades estéticas, seja um exemplo de criação original e não estereotipada. Mas, para que esse livro possa manifestar esse seu potencial, torná-lo real, é indispensável que encontre um leitor generoso que possa fazê-lo dialogar com muitas outras obras, com visões do mundo enriquecidas pela pluralidade e pela aceitação democrática da diferença. Somente dessa maneira o livro deixará de ser um ponto de chegada para se transfomar num ponto de partida permanente para outras leituras – de textos e do mundo. Ou dos inúmeros e inumeráveis mundos que existem, que não queremos mais que continuem existindo ou que sonhamos que um dia possa vir a existir.”
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