11.06.2015 | ABL
Ana Maria conta que ficou muito contente com a decisão unânime do STF declarando inconstitucional a exigiencia de aprovação prévia do biografado. Tanto pessoalmente, como na qualidade de presidente da ABL ela levantou essa bandeira desde o início.
Publicou um artigo no GLobo (novembro de 2013) e se manifestou na audiência pública que o STF convocou, na qualidade de amicus curiae, ou seja, associando a ABL à ANEL no questionamento.
Abaixo está o texto mais direto ligado ao assunto, que ela leu no STF em nome da ABL e foi citado ontem por alguns ministros em seus votos.
Exma. Sra. Ministra Carmen Lucia,
A Academia Brasileira de Letras, com sede no Rio de Janeiro, tem por fim a cultura da língua e da literatura nacional.
Assim reza o artigo primeiro dos estatutos da ABL, de 28 de janeiro de 1897, em documento assinado pelo seu primeiro presidente, Machado de Assis, pelo Secretário-Geral Joaquim Nabuco e pelos demais membros da primeira diretoria, a saber : Rodrigo Octavio, Silva Ramos e Inglês de Souza.
Baseada na obrigação que lhe é imposta por esse estatuto, e preocupada com o que se lhe afigura como uma ameaça à cultura e à literatura nacional, a Academia Brasileira de Letras, pela unânime decisão dos membros de seu plenário, decidiu respeitosamente se associar à Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL -- na proposta de ação direta de inconstitucionalidade (com pedido de medida cautelar, a ser apreciado inaudita altera parte), tendo por objeto a declaração de inconstitucionalidade parcial , sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 da Lei Federal 10.046, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
Por um lado, compreende-se que a louvável intenção do texto legislativo deva ter sido a proteção da honra, da boa fama e da respeitabilidade dos cidadãos, bem como a defesa de sua privacidade e intimidade. Por outro lado, porém, não podemos deixar de constatar que a amplitude semântica dos termos em que estão redigidos os referidos dispositivos legais acaba por ensejar interpretações que, tomadas em sua literalidade, não se coadunam com os preceitos constitucionais de garantia da liberdade de expressão e do direito à informação. Dessa forma, em nosso entender, dão margem a que prolifere uma forma de censura privada inaceitável, constituída pela proibição por via judicial de biografias não autorizadas.
Mais que isso: pela repetição de decisões desse tipo, causando graves prejuízos econômicos aos agentes envolvidos na produção de livros, tal tipo de interpretação do texto legal ameaça a sociedade com consequências ainda mais graves , tipificadas pelo crescente movimento no sentido de que se exija a prévia autorização do biografado, ou de seus familiares em caso de pessoa falecida, para que possa se efetivar a publicação da obra.
Tal exigência deriva de uma interpretação semântica de abrangência exorbitante, a nosso ver, e constitui violação do direito do cidadão à informação (artigo 5º, XIV da Constituição) além de atingir em cheio a liberdade de manifestação do pensamento, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação , garantida pela Carta Magna em sua plenitude, sem restrições, censura ou necessidade de licença, numa democracia em que não há lugar para qualquer forma de index de livros proibidos ou liberados apenas mediante o nihil obstat de algum censor (CF artigo 5º, IV e IX ).
Permitam-nos algumas considerações de ordem literária e cultural.
Biografias constituem um gênero literário e uma fonte histórica. Uma cultura não pode prescindir delas nem aceitar que se transformem em meros sucedâneos de material de divulgação publicitária, por definição gerados a partir de interesses particulares e mediante pagamento, em troca da difusão de uma marca ou produto, de modo a gerar lucro futuro.
Muito pelo contrário.
A continuidade da civilização se fez em cima da lenta acumulação de obras históricas e literárias que oferecem às futuras gerações uma variada galeria de modelos, exemplos e análises críticas de vidas pregressas, que podem ser admiradas ou execradas mas devem ser conhecidas. Sua leitura nos permite conhecer uma sociedade e entender as circunstâncias que movem a ação humana através dos tempos. Conhecer as vidas dos antepassados, em todas as sociedades, constitui uma ferramenta fundamental para a construção do futuro e para a elaboração da identidade cultural.
Herdamos dos clássicos universais textos biográficos que se tornaram imprescindíveis para que possamos conhecer e compreender a trajetória cultural da espécie . É impossível avaliar o tamanho das perdas causadas à cultura se não tivéssemos tido acesso, por exemplo, a uma obra como Vidas Paralelas de Plutarco para conhecermos gregos e romanos ou a Vida de Artistas de Giorgio Vasari para apreciarmos as condições em que se gestou a contribuição do renascimento italiano. Entre nós, biografias de Machado de Assis e do Visconde de Mauá, de Pedro II e Castro Alves, de Assis Chateaubriand e de Nelson Rodrigues, de Anísio Teixeira e Nabuco de Araujo, e tantas outras, enriquecem a cultura brasileira e contribuem para a formação de uma consciência de quem somos e de como nos construímos ao longo da história, com nossas características próprias, nossos defeitos e qualidades, nossas limitações e desafios, nossos erros a serem evitados, nossos acertos a serem desenvolvidos.
Ainda que não sejam meras transcrições jornalísticas e não possam ser consideradas documentos que atestem veracidade inequívoca de fatos narrados, e ainda que incorporem referências subjetivas, as biografias trazem versões que enriquecem uma cultura. Tal aspecto de múltipla abertura as caracteriza. Está presente nelas, mesmo quando essas versões se apresentam de mistura com memórias de eventuais fontes ou até mesmo com ocasionais distorções ficcionais, como parte do fenômeno social e estético que ocorre no imaginário contemporâneo e que Alfredo Bosi chama de “compresença, a fusão, esse desejo enorme de sair das gaiolas de uma prática compartimentada da cultura” e que hoje em dia pode ser encontrado nas exposições de artes visuais, nas performances, na fotografia, nos filmes que associam documentário e ficção, nos happenings e nas manifestações representativas do nosso tempo em geral. Vivemos, segundo ele, uma época de busca “de um novo corpus em que as fronteiras estejam derrubadas, onde o histórico entre para o literário e o literário entre para o histórico”.
Sempre no dizer de Bosi, essa tendência a “fazer tremer toda aquela concepção de arte pela qual nós monumentalizávamos os nossos autores” é uma marca de nosso tempo -- e em seu livro “A Literatura e a História” (Editora 34, São Paulo, 2013), ao examinar esse processo, o crítico paulista nos dá exemplos que a atestam no caso de biografias de clássicos italianos, como Giuseppe Leopardi . Paradoxalmente, a recusa à hagiografia e a essa monumentalização com frequência procuram servir mais à verdade que às mentiras. Esse é um traço que a caracteriza – a busca da verdade, com a consciência de contribuir para que ela seja atingida, ainda que com escrúpulos e cuidados para não se apresentar como única versão possível, mediante a eliminação de qualquer possibilidade de contraditório.
A leitura sutil e aguda de Alfredo Bosi detecta essa tendência mesmo em um caso extremo, de autobiografia, o de Graciliano Ramos em “Memórias do cárcere”, quando o memorialista tem a intenção expressa e consciente de ser fidedigno e factual, exato e idôneo, como mero observador, mas justamente por criar para si próprio um paradigma de tal honestidade é obrigado a reconhecer e reiterar a todo instante, de forma obsessiva, quase como um mantra, que “outras pessoas (...) provavelmente têm visões diferentes da minha”.
Considerando esse quadro amplo que situa a biografia como um gênero literário, crucial na formação da identidade cultural de um povo, a Academia Brasileira de Letras só pode insistir em se manifestar a favor de que o direito à liberdade de expressão seja total e integralmente respeitado, como manda a Constituição.
Condicionar a criação de todo um gênero literário à prévia manifestação individual de concordância de alguém significa aceitar que um arbítrio pessoal incida sobre a liberdade de manifestação . Pode ter um efeito devastador sobre o debate entre pontos de vista diferentes e a boa prática da discussão intelectual democrática, que necessariamente deve admitir matizes de argumentação, contestação e contradições. Uma interpretação dessa ordem restringe a criação, compromete a nossa literatura e apresenta o risco de empobrecer a cultura brasileira, silenciando uma das partes significativas que a constituem e deixando-a à margem da circulação internacional de ideias.
Outro grave risco representado pela aceitação dessa multiplicação de proibições prévias está na abertura de portas para a instalação da censura à imprensa, na medida em que a argumentação que serve a uma exigência de autorização prioritária para um tipo de texto deverá, logicamente, servir a outras e incidir sobre jornais, revistas, televisão e demais meios de comunicação de massa, visto que a redação dos referidos artigos, cuja constitucionalidade questionamos, em momento algum se refere especificamente a livros.
Por todos esses motivos, a Academia Brasileira de Letras decidiu acompanhar, como amicus curiae, a Ação Direta de Constitucionalidade apresentada a esse egrégio tribunal pela Associação Nacional de Editores de Livros.
Ana Maria Machado
Presidente
Academia Brasileira de Letras
Brasília, 21 de novembro de 2013
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