27.01.2016 | Mundo
León Tolstói tinha a Rússia czarista, Henry Miller tinha Paris dos anos 1920, Machado de Assis tinha o Rio de Janeiro do século XIX, Jack Kerouac tinha uma longa estrada chamada Estados Unidos. Cada autor em seu tempo e lugar foi construído por e reconstruiu o país e a cidade em que, de passagem ou de vez, acabou por habitar ou apenas admirar. Por aqui, há vinte anos, Ana Maria Machado teve Manguinhos – a exemplo de seu primo Reinaldo Santos Neves em “A Ceia Dominicana”, de 2008 –, Jacaraípe e Nova Almeida em “O Mar Nunca Transborda”.
Agora, a escritora e ex-presidente da Academia Brasileira de Letras se volta mais uma vez ao século XIX no Brasil – como fez em “A Audácia Dessa Mulher” – para contar a história de amor entre o abolicionista Joaquim Nabuco e a investidora Eufrásia Teixeira Leite. Trata-se de “Um Mapa Todo Seu”, romance histórico que resgata o período do abolicionismo no Brasil e, baseado em documentos públicos e escritos pessoais, perscruta o caso difícil de um casal de origens bem diversas.
Carioca, Ana Maria tem uma casa em Manguinhos há vinte anos, onde passa sobretudo as festividades de dezembro e o verão. Na varanda de seu habitat capixaba, a escritora conversou com A GAZETA sobre o lançamento, a produção brasileira, o futuro do livro e, claro, a carreira que dura mais de quarenta anos.
Todo livro é uma mistura de algumas coisas. Eu já vinha lendo Joaquim Nabuco há muito tempo. Li “Um Estadista do Império”, que é um livro do Nabuco sobre o pai dele, e fiquei muito impressionada. É muito bem escrito, muito fascinante. A gente pensa nele como o “abolicionista notável”, que é o que estuda no colégio. Mas é um grande escritor. Então comecei a querer ler outras coisas dele. Eu tinha escrito um romance chamado “A Audácia Dessa Mulher” (1999), uma história que parcialmente se passa no século XIX. Na ocasião, o Sérgio Paulo Rouanet (membro da Academia Brasileira de Letras) leu e disse: “você tem que escrever outro livro sobre o século XIX”. E eu não pensava em escrever outro. Até que um dia ele me falou: “você devia escrever a história da Eufrásia”, que foi a namorada do Joaquim Nabuco. E eu estava tão fascinada pelo Nabuco que me interessei e procurei saber sobre a Eufrásia. Li biografias, diários, teses de historiadores. Fui pesquisar em bibliotecas, na Fundação Joaquim Nabuco.
Apesar de toda a documentação, existe mais invenção no início do livro, quando você examina o impedimento da relação entre os dois.
É. Mas há muita interpretação sobre isso. Há várias versões sobre a história deles, versões contraditórias – uns dizem que eles se conheceram na adolescência, uns que se conheceram num navio.
Eufrásia, por ser uma mulher à frente do seu tempo, pode ser considerada uma feminista?
Precursora, digamos. A gente chama de feminismo um movimento dos anos 1960 pra cá. Acho que rótulos não definem muito. Mas ela teve uma autonomia que foi possível pelo fato de não depender de ninguém economicamente. Como ficou órfã muito cedo, ela herdou muito dinheiro, ela e a irmã. O caminho natural era se submeter aos tios e se casar com quem eles escolhessem. Isso ela não quis fazer. Ela percebeu que tinha autonomia pra mandar na própria vida. E por outro lado ela teve uma educação muito rara pra uma mulher daquela época. Lia e falava francês, tinha à disposição a biblioteca do pai, que era muito voltada para a economia.
Por que o contexto do abolicionismo te fascina?
O contexto da liberdade em geral me instiga. É uma constante em toda a minha obra, desde os primeiros romances. “Tropical Sol da Liberdade” é sobre a ditadura, por exemplo. Vários dos meus livros infantis são sobre esse temas, desde “Era Uma Vez Um Tirano”, ou livros que contam a história da escravidão pra jovens. Sempre gostei disso, estudei geografia e história antes de fazer letras.
Lembra de quando se tornou uma escritora?
Em 1969. Eu já dava aula de literatura e era jornalista, então escrevia. Por um lado, fazia minha tese de doutorado. Por outro, fui para o exílio na França, porque estávamos sob ditadura no Brasil. Estavam fazendo uma revista pra crianças em São Paulo e me pediram pra escrever uma história. Nunca tinha escrito pra criança, mas deu certo. Cada semana um autor que escrevia. Quando as histórias eram minhas ou da Ruth Rocha, a revista vendia quatro ou cinco vezes mais. Então começaram a nos revezar. E pagavam bem, o que permitiu uma profissionalização. Eu estava no exterior com muita dificuldade de sobrevivência. Meu marido tinha dificuldade de exercer a profissão – ele era médico. Na França, as exigências pra reconhecer o diploma eram diferentes. Então a possibilidade de ter um pagamento mais ou menos fixo ajudava. Aí comecei a escrever muito.
Desde então sempre teve uma rotina pra escrever ficção?
Sempre. Gosto de escrever de manhã, procuro escrever todos os dias, ou quase todos os dias. Não quer dizer que eu aproveite tudo, jogo muita coisa fora. Hoje em dia a gente deleta, é mais simples.
Ficou mais fácil escrever depois de 40 anos de ofício?
Ficou mais difícil. Primeiro porque muitas das coisas que eu queria dizer, já disse (risos). Segundo porque não quero ficar me repetindo. Fico mais exigente comigo mesma. Quando a gente está começando é mais inconsciente de certo modo. Depois a autocrítica fica mais severa. Percebo que demoro mais tempo escrevendo hoje do que antes.
O Brasil é periférico em relação à produção literária?
Não diria que é o Brasil, diria que é a língua portuguesa. Ela é quase um gueto. Há grande dificuldade em ser lido nas editoras dos grandes centros. A dificuldade de publicar (fora do país) não é de encontrar tradutores, é de haver entre os editores quem consiga ler português pra saber se aquele livro vale a pena. Algumas políticas têm ajudado muito nos últimos dez anos, como bolsas pra tradutores – mas tem que ser uma editora pra indicar o tradutor, ter já um contrato. Falta outra coisa – que já teve e hoje há muito menos –, que é o apoio a cátedras de universidades estrangeiras que ensinem literatura em português. Isso formaria críticos, leitores, editores, enfim, gente que saiba ler em português.
Como você vê o futuro do livro tradicional, de papel?
Acho que algumas formas de livro serão substituídas pelo virtual. Por exemplo, guia de viagens, enciclopédias, dicionários. Não tem mais sentido fazer isso em livro de papel. As possibilidades de ilustração, leitura paralela, horizontalidade, hipertexto, de tudo, são maiores. A literatura vai continuar a existir da mesma forma – já foi em papiro, pergaminho, papel. Já foi oral. Antes de existir escrita Homero criou “Ilíada” e “Odisseia”. Não é o suporte que faz a literatura. Mas a experiência que tivemos no Brasil de tentar publicar literatura em e-book... não acontece nada, não existe. João Ubaldo era best-seller em papel, já em e-book não vende nada. Minhas vendagens em e-book são ridículas. Não conheço ninguém que leu meus romances no virtual. Acho que nós estamos muito longe disso, não sei em outros países. Não digo que não vá acontecer, mas ainda estamos tentando.
O que é ser escritor em tempos de crises de toda natureza, não só no Brasil, mas em âmbito global?
O mundo sempre viveu em crise de alguma maneira. O tempo da literatura é outro. É diferente do jornalismo, que está sempre em cima do que está acontecendo e tem que refletir aquilo imediatamente – e depois fica velho. A literatura tem tempo de maturação, depende que aquilo decante. O livro de ficção que publiquei sobre 1968 saiu em 1988 e, seis meses depois, o do Zuenir Ventura também foi lançado (“1968: o Ano Que não Terminou”) – que é um ensaio, portanto obra literária. Os dois levaram vinte anos pra amadurecer, e duram mais. Um dia um crítico amigo meu disse que na minha obra existe um reflexo da história recente do Brasil – a ditadura, as Diretas Já, o governo Tancredo-Sarney, a hiperinflação. Eu não tinha me atentado pra isso. Então sempre teve crise, e sempre estamos refletindo. Quando escrevemos em um momento de crise, isso acaba aparecendo, algumas vezes de forma direta, outras de forma mais indireta.
Fonte: A Gazeta
Publicado na Gazeta Online em 23 de janeiro de 2016
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