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Do outro lado tem segredos

03.08.2013 | Histórias

Arrastão na praia de Manguinhos em 1929A autora dá seu depoimento sobre esse livro:

Este é um livro em que mergulhei de modo muito forte na minha relação de vida com Manguinhos (Espírito Santo): o mar, os amigos pescadores, as festas e folguedos tradicionais em que sempre vivi imersa lá, desde a infância. Há alguns cânticos que eu nem lembrava que sabia e, à medida que ia escrevendo o livro, voltavam com força a memória. Num deles, quando eu quis conferir uma palavra que tinha esquecido e telefonei a minha mãe para tentar saber, ela até levou um susto. Disse que era incrível eu lembrar, porque quem puxava essa cantoria era um velho pescador que morreu antes de eu fazer dez anos, e nunca mais ela ouvira cantar… De qualquer modo, continua muito forte a presença do Congo na tradição capixaba, e as novas gerações não deixam que ele se acabe. Tenho muito orgulho de que, em Manguinhos, eu, meus irmãos, filhos e sobrinhos somos aceitos como “nativos” e incorporados na hora de bater congo, chamados a cantar ou dançar juntos.

Arrastão em 1950 Também o ambiente de pescaria com rede de arrastão está muito presente nessa história. E também não é só da infância. É de sempre. Tenho fotos em que minha mãe aparece, menina, em 1929, no meio da criançada que ajudava os adultos (como meu avô) a puxar a rede. E tenho fotos minhas, de meus filhos, de meu neto na mesma atividade. O que mudou foi a importância dessa forma de pesca para a comunidade e os resultados dela. Hoje se pesca menos manjuba, menos peixe em geral – efeito de muito tempo de pesca predatória nas redondezas , das redes de nylon, da construção de grandes portos nas vizinhanças. A rede de arrastão, artesanal, deixou de ser uma modalidade importante de pesca, mas ainda acontece por lá.

E vale a pena lembrar uma curiosidade: meu primeiro texto publicado em toda a vida se chamava ‘Arrastão”, na revista Folclore. Eu tinha uns 12 anos e descrevia justamente uma pesca desse tipo em Manguinhos. Não guardei nada, claro. Mas ficou na memória. E muitos anos depois, após a publicação de Do outro lado tem segredos, apareceu esse original, manuscrito em papel almaço, que tinha sido guardado por um de meus tios. Fiquei surpresa em ver quanto da descrição que fiz no livro já estava embrionária na redação infantil.

Pescadores puxam a rede de arrastão - 2000  Tenho a impressão de que, ao escrever sobre esses outros lados todos, despertei segredos misteriosos que vão muito além da memória de nossa cultura e falam também de profundezas da minha vida.

Quando esse livro foi lancado, o grande crítico brasileiro Alceu Amoroso Lima, que também usava o pseudônimo Trustão de Athayde, escreveu sobre ele a seguinte crônica, no Jornal do Brasil:

 

Um idílio
Tristão de Athayde

Ana Maria Martins foi uma de minhas melhores alunas na Faculdade Nacional de Filosofia. Seu primeiro livro, já com o nome de Ana Maria Machado, foi uma tese tão importante sobre o Recado do Nome. Leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens (1976), que Antonio Houaiss escreveu, em seu prefácio, que “este ensaio, que é inclusive um desvairo de beleza verbal, levanta um divisor de águas no gênero, antes dele e o que se tentará depois”. Discípula de Roland Barthes e familiar dos segredos mais atuais do linguistês, idioma crítico moderno equivalente ao economês dos mais modernos economistas, Ana Maria Machado (na linha filosófica de Heidegger, de que a palavra cria a coisa), ingressou nas letras como um adestrado piloto, no arquipélago da crítica mais moderna e sofisticada, na qual o mistério da palavra é dissecado em sua mais íntima anatomia.

Pois bem, essa jovem capitã de longo curso semiótico volta agora às letras ou pelo menos lança a sua rede literária a cardumes totalmente diversos. Em vez do mar alto das extremas complexidades formalísticas, em que Guimarães Rosa foi maestro di color che sanno, fica na praia, com o seu jovem herói Benedito ou Bino, filho de pescador, de um recanto de nosso litoral não identificado. O menino fica na praia, mas olhando nostalgicamente para o alto-mar e prevendo que “do outro lado tem segredo”. É o título dessa pequena novela, entendida como uma narrativa para crianças. O problema da literatura infantil sempre me preocupou e no primeiro volume dos meus próprios Estudos (1927) sustentei que as crianças e não os adultos deveriam escrever “para crianças”. Mas, se é verdade “a eterna contradição humana”, do nosso mestre em mistérios psicoliterários, também é verdade que os adultos se interessam, cada vez mais, com coisas de criança e estas com coisas de adultos.

Seja como for, essa volta de Ana Maria Machado às letras, já não mais como analista de literatura, mas como criadora, é uma página de alta beleza formal e de sutis alusões parabólicas, que bem mostram como a verdadeira simplicidade literária, não por deficiência mas por opulência, é a plenitude da complexidade. É preciso ter percorrido, ao menos em imaginação, todos os horizontes do mundo, como dizia Chesterton, para descobrirmos que a verdade, o bem e a beleza estão em nossa casa, ao alcance de nossas mãos. Parca domus magna veritas. Quando comecei a ler esse pequeno e delicioso idílio, imaginei que o pequeno Bino pegasse de um bote para ver, realmente, o que havia “do outro lado do mar e se perdesse no oceano”. Era literatura bonita demais para agradar às crianças. Agradaria aos adultos, cansados de sofisticação literária. Mas quando terminei, fiquei pensando no motivo pelo qual Jesus escolheu o estilo parabólico para revelar aos homens os segredos que trazia de suas confidências com o Pai. A razão dessa escolha não era a preferência que os orientais têm pela linguagem figurada. Era realmente a escolha de um terceiro estilo, que não fosse exclusivamente nem para adultos nem para crianças, e sim para seres humanos cuja perfeição devia ser a semelhança ou antes a integração no espírito da infância.

O estilo parabólico era, realmente, um traço de união entre as diferentes idades do homem e, particularmente, essa verdade psicológica de que a velhice é uma volta à infância. Ou autêntica, quando por superabundância. Ou deformada, quando por esgotamento.

Esse pequeno idílio, “Do outro lado tem segredos”, possui a simplicidade das letras que superam o beletrismo. É uma parábola que se passa entre pescadores, o menino Bino e a menina Maria, em que Bino olha para lá do oceano, em direção à África de Aruanda, de onde vieram os seus antepassados. E a menina Maria, descendente de índios, olha para lá dos montes, de onde vieram os seus, no horizonte telúrico. São duas faces do mundo brasileiro, refletidas nessas duas crianças praieiras e no encontro de duas raças nostálgicas, do oceano e da floresta, com seus mistérios invisíveis e indizíveis.

Há, nessa historieta de crianças, à flor de sua natureza ainda virgem, uma intensa beleza de dores ainda não sofridas e das decepções ainda não tocadas pelo crepúsculo futuro de esperanças malogradas. Mais uma vez, o mistério do encontro secreto entre a infância e a velhice, entre a vida previvida e a vida sobrevivida. Entre a ignorância e a sabedoria, mistério que transcende nossa ciência e nossa cultura.

Ana Maria Machado leu muitos livros e sabe muitos segredos da literatura. Sabe que pra lá dos mares há todos os mistérios mitológicos de Netuno. Como prá lá dos morros há todos os segredos de Demeter. Os mitos mais antigos da humanidade se conjugam e se traduzem pela linguagem intocada desse casal de crianças da praia e do morro. Só falta o português para que todo o Brasil ali esteja. Praieiro e telúrico. É a nossa inteligência, solicitada pela tentação da cultura conquistada e pela intuição mais inata. É a hesitação entre o canto das cigarras e a ressonância dos búzios. É o segredo inspirado pelas palavras de Cristo, em que Deus colocou o mistério de sua criatividade. Na faculdade, Ana Maria era uma aluna que não se contentava com os textos e as lições e já sofria a tentação da pintura mais abstrata e... das guerrilhas mais concretas. Foi ela, se não me engano, uma das organizadoras, na faculdade, de uma exposição dos posters mais revolucionários. E hoje, depois de incursões pelas letras mais sofisticadas, nos presenteia com essa curta parábola de uma cristalinidade de fonte. E ainda tem por diante, em sua juventude preservada, largos horizontes a percorrer, para lá de praias e de montes.

Jornal do Brasil, Opinião
Pág. 11, 1/3/79

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