12.01.2016 | Sobre a Ana
"Se devo a algum escritor o fato de escrever, sem dúvida é a ele. Aquela coisa que García Márquez conta que sentiu quando leu Kafka: já que se pode escrever desta maneira, então eu também quero.
Eu tinha 13 anos, estudava no colégio Mello e Souza, de Ipanema.
A maneira de Rubem escrever batia em mim como o verso de Salinas que só conheci muito depois - respondia ao que perguntou minha vida no primeiro dia. Eu recortava as crônicas, relia até decorar. Aos sete anos, tinha ganho de Lídia e Newton, amigos de meu pai (e dele), um caderninho para um diário, ilustrado por outro amigo comum, Carybé. Gostava de ler desde que me entendia. Mas só lendo Rubem que nasceu em mim o desejo da escrita. A tentação de garimpar dentro da língua nossa, de todo dia, aqueles brilhos ocultos que ele sabia mostrar. Papai me apresentou a ele, fiquei muda. Foi uma relação sempre esquiva, ao longo dos anos. Quase sempre, ele parecia um urso, só grunhia de vez em quando. Mas de repente me dizia frases únicas, de presente. Uma vez me esperou na saída do colégio e eu fiquei de castigo porque perdi a hora do almoço, batendo papo num banco de praça. Às vezes conversávamos por telefone. Numa noite de festa, Caymmi cantando lá dentro, ele me falou um tempão na varanda, sobre as estrelas, o mar, meus olhos. Nunca esqueci. Acho que eu era meio apaixonada por ele e não sabia. E um dia de setembro, as estrelas, o mar, meus olhos.
Nunca esqueci. Acho que eu era meio apaixonada por ele e não sabia. E um dia de setembro, levei-lhe uma cesta de pitangas que comemos deliciados na cobertura onde começava a morar, guardando os caroços para futuros plantios. Mas escrever como ele era impossível.
Desisti. Fui ser pintora.Aí não tinha a menor vergonha de lhe mostrar meu trabalho. E quando fiz minha exposição individual, foi de Rubem o texto de apresentação. Apesar do padrinho, acabei voltando à escrita, maldição inescapável. Nunca dei nada para ele ler. Durante anos, não nos vimos. Num jantar do Marcito para Saramago nos sentamos lado a lado. Ele se virou e disse: “Li seu Alice e Ulisses.” Silêncio. Alguém puxou conversa do outro lado, o assunto mudou. Daí a pouco, ele voltou, com outra frase: “É eruditíssimo.” Fiquei calada, quase em pânico, puxa, que horror, ele não gostou, e isso me importava tanto. Depois de mais uma garfada ele olhou pra mim e disse: “Mas é belíssimo. Uma novela rara.” Ganhei a noite. A paz. Só não ganhei coragem pra dizer tudo isso a ele. O mínimo que posso fazer agora é dizer de público. Posso não ter sido pupila, mas sou para sempre amorosa tiete do senhor Braga."
Texto escrito pela Ana Maria para as comemorações do Centenário de Rubem Braga em 2013.
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